Kawasaki KR: a força verde

Guy Bertin e a KR 350 em Assen, na Holanda, durante a segunda etapa do ICGP 2016.
Guy Bertin e a KR 350 em Assen, na Holanda, durante a segunda etapa do ICGP 2016.

Durante cinco temporadas, entre 1978 e 1982, uma das grandes atrações das categorias 250 e 350 do Campeonato Mundial de Motovelocidade foi o duelo entre as Yamaha TZ e as Kawasaki KR. Um duelo entre duas filosofias e duas concepções técnicas. Enquanto a TZ compartilhava componentes básicos com uma Yamaha de rua (a RD 350), a KR foi totalmente desenvolvida como moto de competição. Além disso, a Yamaha criou a TZ para ser vendida a equipes particulares e pilotos privados, enquanto a KR foi disponibilizada somente para pilotos e equipes apoiados pela Kawasaki. Uma disputa emocionante, revivida anos depois no ICGP. Melhor ainda: os brasileiros poderão acompanhar ao vivo o último “round” de 2016 em Goiânia, no dia 23 de outubro.

TZ versus KR em 1978, com Roberts resistindo a Ballington e Hansford...
TZ versus KR, versão Mundial 250 em 1978: Roberts resistindo a Ballington e Hansford.

O projeto da KR foi desenvolvido conjuntamente pela matriz da Kawasaki no Japão e por sua filial nos Estados Unidos. Na década de 1970, a 250 tinha muita força naquele país, a ponto de vários pilotos norte-americanos (entre eles, Kenny Roberts) terem feito suas estreias no Mundial nessa categoria. A Kawasaki achou conveniente desenvolver uma 250, já pensando também no Mundial. Para esse trabalho, a fábrica convocou Randy Hall, mecânico que tinha em seu currículo o título mundial de Rodney Gould na 250 em 1970. Hall transferiu-se para a Kawasaki EUA para desenvolver o conjunto da KR, reportando-se a Ken Yoshida (chefe do projeto) e atuando em conjunto com Nagato “Bud” Sato, projetista do motor.

TZ versus KR, versão ICGP 2016: George Hogton-Rusling contra Guy Bertin
TZ versus KR, versão ICGP 2016: George Hogton-Rusling contra Guy Bertin

Ousada, a Kawasaki decidiu experimentar conceitos diferentes dos que nortearam o projeto da Yamaha TZ, então a moto a ser batida. Criou um motor de dois cilindros em posição longitudinal (configuração depois adotada pela Kawasaki em seus motores para jet ski) com válvulas rotativas – sistema que, entre outras vantagens, proporciona maior torque em baixas rotações e também entrega de potência mais gradual que na TZ. O resultado foi uma moto leve e estreita, de maneira a minimizar a área frontal e favorecer a aerodinâmica.

A equipe da Kawasaki na década de 1970. De bigode e camisa aberta no peito, Kork Ballington. à direita, Ken Yoshida (de boné amarelo) e "Bud" Sato.
A equipe da Kawasaki na década de 1970. De bigode e camisa aberta no peito, Kork Ballington. à direita, Ken Yoshida (de boné amarelo) e “Bud” Sato.

A estreia da KR aconteceu em 1975 na 100 Milhas de Daytona, corrida da 250 que fazia preliminar da 200 Milhas de Daytona. Os pilotos foram o canadense Yvon Duhamel e o norte-americano Ron Pierce. Meses depois, a moto fez sua primeira corrida no Mundial, no GP da Holanda. Duhamel recebeu a bandeirada em quinto lugar, enquanto o inglês Mick Grant abandonou por problemas nos freios. Parecia promissor, mas em seguida a moto revelou sérios problemas de vibração que levaram a Kawasaki a dedicar toda a temporada de 1976 para redesenhar a máquina. Em 1977, a KR 250 reapareceu no Mundial, já bastante evoluída. Entre as novidades estava a adoção de um sistema de monoamortecedor, denominado “Uni-Trak” – uma resposta ao Monoshock da Yamaha. O trabalho compensou: Mick Grant venceu dois GPs, na Holanda e Suécia.

Trio de KR 250 em 1979: Hansford (2), Ballington (1) e Baldé.
Trio de KR 250 em 1979: Hansford (2), Ballington (1) e Baldé.

O resultado foi tão animador que, para a temporada de 1978, a Kawasaki tomou duas decisões importantes: reforçar a equipe e fabricar a KR 350. Contratou o sul-africano Kork Ballington e o australiano Gregg Hansford, que disputariam as duas categorias, e deu apoio ao importador da Alemanha, que entregou uma KR 250 para Anton Mang. A temporada da 250 teve 12 corridas, das quais a Kawasaki venceu nove – quatro com Ballington (campeão da temporada com 124 pontos), quatro com Hansford (vice, com seis a menos) e uma com Mang (quinto no final do ano). Hansford teve a honra adicional de vencer a 100 Milhas de Daytona. Na 350, a KR também venceu nove corridas (seis com Ballington e três com Hansford), com o sul-africano sendo campeão e o australiano terceiro colocado, apenas um ponto atrás de Takazumi Katayama (Yamaha TZ). História parecida com a do ano seguinte: Ballington foi novamente campeão nas duas categorias, com sete vitórias na 250 (com Hansford vice e Mang terceiro) e cinco na 350 (Hansford em terceiro, com três vitórias). Além deles, correram com as KR 250 o francês Jean-François Baldé (oitavo no campeonato) e o austríaco Edy Stölinger (nono, com uma vitória).

Outro nome, outras cores, mesma moto: as KR de Mang correram como Krauser em 1980.
Outro nome, outras cores, mesma moto: as KR de Mang correram como Krauser em 1980.

Quem ler somente estatísticas poderá imaginar que o domínio da Kawasaki foi interrompido em 1980. Oficialmente, Mang foi campeão ao guidão de uma Krauser (tradicional fabricante de acessórios que existe até hoje e chegou a fabricar motocicletas completas). Mas esta moto era assumidamente uma KR 250 pintada de branco e inscrita com o nome do patrocinador de Mang. Sua campanha resultou em quatro vitórias, quatro segundos lugares e dois terceiros em dez provas disputadas. Ballington, com uma Kawasaki oficial, obteve cinco vitórias e ficou com o vice-campeonato, enquanto Baldé foi terceiro, sem vencer. Na 350, Mang, também de “Krauser”, venceu duas corridas e foi vice-campeão. Ficou atrás da Bimota-Yamaha do sul-africano Jon Ekerold e à frente da Kawasaki de Baldé, terceiro na pontuação final. Ballington havia se transferido para a 500, onde a Kawasaki tentou – sem conseguir – repetir o sucesso obtido nas duas categorias menores.

Eddie Lawson e sua KR 250: vitórias em Daytona em 1980 e 1981.
Eddie Lawson e sua KR 250: vitórias em Daytona em 1980 e 1981.

Se na 500 as coisas estavam complicadas, na 250 e na 350 a Kawasaki continuava praticamente imbatível. Em 1981, “de volta” à marca, Mang foi campeão nas duas categorias, tendo vencido dez das doze corridas da 250 e cinco na 350. Baldé foi o vice da 250, com uma vitória. O único piloto a interromper a série de vitórias da Kawasaki na 250 foi Eric Saul, com sua Chevallier-Yamaha. Nos Estados Unidos, a KR 250 conquistou triunfos importantes, em especial as vitórias de Eddie Lawson na 100 Milhas de Daytona em 1980 e 1981. Nesse mesmo ano, Lawson correu pela primeira vez no Mundial com uma KR 250. Inscreveu-se em três GPs e não completou nenhum, o que certamente deixou-o bastante descontente… O amuo só desapareceu anos depois, quando conquistou o primeiro de seus quatro títulos mundiais na 500 (três pela Yamaha e um pela Honda). Recordando sua estreia no Mundial, Lawson resumiu seu desempenho com algum bom humor: “Foram três corridas e apenas uma volta completada!”.

Mang, de volta às cores da Kawasaki em 1981. Note a largada com motor desligado, com os pilotos empurrando a moto para ela funcionar. Foi assim até o final de 1986.
Mang, de volta às cores da Kawasaki em 1981. Note a largada com motor desligado, com os pilotos empurrando a moto para ela funcionar. Foi assim até o final de 1986.
Jean-François Baldé também venceu GPs com a KR.
Baldé também venceu GPs com a KR.

A temporada de 1982 foi a última da categoria 350 no Campeonato Mundial. Mang foi o campeão, tendo vencido apenas uma corrida, e Baldé foi o terceiro colocado, com três vitórias. Na 250, entretanto, Mang perdeu o título para Jean-Louis Tournadre (Yamaha TZ) por apenas um ponto, mesmo subindo ao alto do pódio cinco vezes contra apenas uma do francês. Tournadre fez uma temporada bastante regular, marcando pontos em todas as corridas, e sua vitória aconteceu no GP da França – prova boicotada pelos pilotos oficiais de fábrica, Mang entre eles, alegando falta de segurança na pista de Nogaro.

Guilleux e a equipe ROC Performance deram à KR sua última vitória no Mundial, em 1983.
Guilleux e a equipe ROC Performance deram à KR e à Kawasaki sua última vitória no Mundial, em 1983.

No final de 1982, a Kawasaki decidiu se retirar do Mundial de Motovelocidade. Mas uma KR 250 ficou com a ROC Performance, equipe particular francesa responsável pela participação oficial da Kawasaki no Mundial de Endurance. A moto foi entregue ao francês Hervé Guilleux. Mesmo sem o desenvolvimento que seria possível com o apoio da fábrica, Guilleux terminou o campeonato de 1983 em quarto lugar, tendo vencido o GP da Espanha, em Jarama. Foi a última vitória da KR – e também a última da Kawasaki – no Campeonato Mundial de Motovelocidade. No ano seguinte, a Kawasaki retirou-se também do Mundial de Endurance. O italiano Loris Reggiani fez as últimas corridas da KR, em 1984, com um sexto lugar como melhor resultado.

Sabe-se que foram construídas 12 KR na configuração 1975-1976 (todas 250) e outras 40 após 1977 (250 e 350). Depois disso, as KR passaram a ser vistas apenas em museus… até serem resgatadas para o ICGP. É com uma delas que Guy Bertin lidera a temporada na categoria 350. Dois preparadores atuais, o francês Jean-Paul Mestre e o italiano Flavio Frighi, tornaram-se os maiores especialistas na preparação das KR. A luta KR x TZ continua aberta, agora no IGCP.

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